sábado, 12 de junho de 2010

O caçador de êider – trecho do livro “Viagem ao Centro da Terra”, de Julio Verne



Quando acordei, ouvi meu tio falando muito na sala ao lado.

Levantei-me imediatamente e apressei-me em ir ao seu encontro.

Falava em dinamarquês com um homem alto e vigorosamente esbelto.

O rapagão devia ter uma força incomum. Seus olhos pareceram-me inteligentes numa cabeça muito grande e um tanto ingênua. Eram de um azul sonhador. Seus longos cabelos, que passariam por ruivos na Inglaterra, caíam nos ombros atléticos. O indígena tinha movimentos flexíveis, mas mexia pouco os braços, como um homem que ignorasse ou desdenhasse a linguagem dos gestos. Tudo nele revelava um temperamento dos mais calmos, não-indolente, mas tranqüilo. Sentia-se que nada pedia a ninguém, que trabalhava para a sua comodidade e que, nesse mundo, sua filosofia não podia ser surpreendida ou perturbada.

Percebi as nuances daquele temperamento pela forma como o islandês ouvia a verborragia ardente de seu interlocutor. Estava de braços cruzados, imóvel, em meio às inúmeras gesticulações de meu tio; para negar sua cabeça virava da esquerda para a direita; para afirmar inclinava-se tão pouco que seus longos cabelos mal se mexiam. Uma economia de movimentos que beirava a avareza.

Se eu visse aquele homem, nunca adivinharia sua profissão de caçador; nunca devia amedrontar a caça, mas então, como a pegava?

Tudo se esclareceu quando o senhor Fridriksson me disse que o tranqüilo personagem não passava de um "caçador de êider", pássaro cuja penugem constitui a grande riqueza da ilha. De fato essa penugem chamava-se edredon, e não é preciso muito movimento para pegá-la.

Nos primeiros dias de verão, a fêmea do êider, espécie de pato bonito, vai construir seu ninho entre os rochedos dos fiordes, cuja costa é franjada. Construído o ninho, forra-o com plumas finas que arranca do ventre. Logo chega o caçador, ou melhor, o negociante, pega o ninho, e a fêmea faz tudo de novo. Isso continua até que sua penugem acabe.

Quando a fêmea está completamente depenada, cabe ao macho arrancar as suas penas. Como sua penugem é dura e grosseira, o caçador não se dá ao trabalho de roubar o leito da ninhada; o pássaro consegue assim concluir seu ninho. A fêmea põe os ovos, os passarinhos nascem, e no ano seguinte recomeça a coleta do edredon.

Ora, como o êider não escolhe para seu ninho as rochas escarpadas e sim as rochas fáceis e horizontais que vão se perder no mar, o caçador islandês conseguia exercer sua profissão sem grande agitação.

Não passava de um fazendeiro que não era obrigado a semear nem a ceifar, apenas a colher.

O personagem grave, fleumático e silencioso chamava-se Hans Bjelke; fora recomendado pelo senhor Fridriksson. Era nosso futuro guia. Suas maneiras contrastavam singularmente com as de meu tio.

Entenderam-se, entretanto, com facilidade. Nenhum dos dois se importava com o preço, o primeiro, pronto a aceitar o que lhe fosse oferecido, e o segundo, pronto a dar o que lhe pedissem.

Nunca uma barganha foi tão fácil.

Uma história que me pareceu fascinante, embora o personagem seja de tamanha crueldade e insensibilidade. Teria eu um pouco do caçador de êider? Acho que não. Sei que convivemos com alguns caçadores de êider, diariamente. Perfeitamente!

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